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A CONDIÇÃO DA METAMORFOSE
NA OBRA DE ANTÓNIO CANAU

(...)Não sou mais universal quando penso do que quando sinto(...)
Feuerbach

Esta exposição de António Canau que se intitula 1982 _ Uma iconografia pessoal _ 2008 assinala um percurso com vinte e seis anos de trabalho intenso no qual o desenho assume um papel nuclear e abrangente, mas que igualmente se elucida e ganha corpo na medalha, na escultura, na gravura e na fotografia.
Podemos admitir que as categorias de transversalidade e universalidade percorrem a obra de António Canau pelo modo interdisciplinar e de osmose que a caracterizam os quais se desenvolvem em diferentes patamares e expressões.
Ao que se acrescenta a condição da metamorfose: terreno profícuo e singular onde o real e o simbólico se unem, acabando o primeiro por se subsumir no segundo.
A estas duas caracterizações se une uma terceira, que dizendo respeito às duas primeiras as canaliza e focaliza para um sentido único: o da síntese e da economia da expressão na contenção maximizada do significado, isto é do essencial.

Transversalidade, universalidade e a pluralidade do desenho
Uma primeira dimensão nos surpreende na obra de António Canau: podemos designá-la por uma vontade de atravessamento do autor como uma espécie de interioridade que se consubstancia nas obras. Essa volição que nasce de uma forma espontânea no desenho, por vezes compulsiva, permite uma absorção do mundo circundante que se tornou memória ou que é reavivado, por circunstâncias diversas. Assim as séries dão-nos conta de uma comprovada experimentalidade do exercício do desenho (desde o mais forte realismo, ao gestual e à expressão mais depurada) a partir de formas da natureza, seres ou apenas objectos de uso quotidiano (aliás como acontece com a fotografia) que permitem a passagem ou dão o mote para a realização da escultura, da gravura ou mesmo da medalha.
Transversalmente os temas tratados no desenho estabelecem um elo temático entre as diferentes áreas expressivas e igualmente constituem um repositório de criações de 1985 em diante, às quais o autor volta quando necessário para as explorar novamente. Poder-se-á dizer que o desenho na sua pluralidade funciona como uma matriz diversificada que constitui uma linha transversal e ziguezagueante em todo o seu percurso.
O desenho actua como fundo universal, matriz, estrutura e invenção na exploração das técnicas e dos registos gráficos e dos materiais mais adequados, desde o espontâneo ao premeditado. Chave da representação, o desenho convoca e industria o processo de simbolização responsável pela transformação da forma e condensação dos significados (metamorfose) os quais podem ser mutantes, e em que em algumas das vezes é necessário o exercício da violência. Os registos de Goya e Bacon surgem assim como aproximações possíveis de uma realidade que se quer atinente à expressão do ser como podemos encontrar nas Cabeças de Cavalo (1990), nalguns desenhos da série Anuros ou do Hare man/Homem lebre.
Se olharmos o conjunto da obra de António Canau apercebemo-nos como o desenvolvimento de determinados núcleos de desenho se distribuem no tempo e se configuram potencialmente como imagens matriciais e latentes de um labor futuro. 
Assim teremos: a figura feminina (1985), a figura masculina (1985), o nu feminino (1986), o porco (1986), o gafanhoto e mulher (1986) o cão (1986/87), o galgo (1987 e depois em 1992), o touro (1987/88), a lebre (1988) nas suas variantes de hare man/homem lebre, hare woman/mulher lebre e flying hare/lebre voadora, retomada nos anos 90, o cavalogalo em 1987 que antecede a série dos cavalos em 1990 que se transpõe como tantas outras para a gravura e escultura, os anuros iniciados os primeiros esboços em 1988 e que em muitas ocorrências do desenho se unem e fundem com outros animais. O jovem Minotauro que surge nos anos 80 e que depois reaparece apenas Minotauro (2002) ou Minotaura (1987) ou no aparente papel do seu interlocutor o cão (do Minotauro) trabalhado na gravura, que tem a haver com o touro e com o cão, marca um plano que perpassa a pesquisa de António Canau em torno da mitologia, quer seja de tradição greco-romana, quer a céltica em particular ligada a Sintra, zona que calcorreou muitas vezes (Capuchos, Peninha) e aos rituais ancestrais do Monte da Lua. Desde as primeiras mulheres aladas, à figura feminina alada (escultura de 1992) combinando o sentido expressivo com a síntese formal, ou com referência específica à serigrafia à base de tintas de água intitulada Swan Horse and Flying Hare/Cavalo Cisne e Lebre Voadora (1996) que se manifesta este aprofundamento da cultura celta na sua obra.

A condição da metamorfose
O título da exposição escolhido pelo autor indica já a criação de uma iconografia pessoal, possibilitando a ideia de uma iconografia geral comum a todos, uma espécie de iconografia arquétipo, face à qual António Canau realizou uma alternativa: a sua iconografia. Esta repousa numa força imagética particular ligada a elementos afectivos que vão ao encontro das memórias de uma infância feliz no Vale de Bordalo - Gavião, Alto Alentejo, caracterizada por uma relação livre com a natureza e com os animais que nela habitavam, ou que estavam ligados a modos de vida. A lebre, o porco − ver os desenhos intitulados Matança do Porco na relação com as fotografias a preto e branco de 1991 que se relacionam com este tema − o galo, o cavalo, as rãs, as relas, os sapos, os gafanhotos, os pássaros povoaram o universo de António Canau, assim como (mais tarde na Azambuja, Ribatejo) o touro e a experiência da tourada. Por outro lado a caça e a pesca eram actividades comuns nas vivências da infância guardando-se num magma de imagens, de relatos de histórias de vária ordem que permitiram no seu aprofundamento a realização de um bestiário que faz parte desta iconografia pessoal do autor.
É a simbolização/ metamorfose que melhor dá conta do processo de trabalho de António Canau. Por um lado, a compulsividade do desenho permite-lhe desenhar de forma plural muitos dos temas que desde sempre o interessaram, por outro nesse exercício exaustivo vai ao encontro de soluções formais que poderiam ser tratadas e apuradas na gravura e escultura. Exemplo a salientar na gravura pela sua execução exímia e notável resolução formal e compositiva é a série Swan Woman and Swan Horse /Mulher Cisne e Cavalo Cisne ligada ao Swan Horse /Cavalo Cisne de 1992 a preto e branco que podemos também associar à imagem e carga simbólica da esfinge, e que encontra igualmente presente na escultura.
O mesmo poderemos referir relativamente à imagem do Bird Man/Homem Pássaro e da Série Wind Bird/ Pássaro Vento dado que o sentido da efabulação faz parte deste forjar de uma iconografia cujas raízes não são aparentes, nem emprestadas, mas ao inverso, vividas intensamente. É no fundo uma condição de criação que outros autores portugueses desenvolveram como por exemplo Graça Morais em cuja obra encontramos a projecção da cultura secular de Trás-os-Montes, ou por absorção de uma literatura e ilustração de livros e contos infantis, mesmo que refractada pelos acontecimentos mundiais e o expressionismo caustico de Bacon fazem eco em Paula Rego.

O ritmo e o essencial
António Canau seguiu no entanto um caminho afastado das duas pintoras acima mencionadas. O facto de ser escultor e gravador, trabalhando com os volumes e procurando a clareza do recorte e da profundidade, e em meu entender, um certo afastamento deliberado da sensualidade do aparato da cor (que na fotografia utiliza por oposição ao preto e branco) permitiu-lhe caminhar para uma depuração compositiva que na série Sob a Suposta Influência da Lua atinge uma eficácia extrema, assim como nas séries mais recentes como Tie!? de 2006 onde além dos processos tradicionais da gravura utilizou a manipulação das imagens 3D, ou na série The Moon in the Swallows Eye over the Horizon Line/ A Lua no Olho da Andorinha sobre a Linha do Horizonte de 2006. Esta pesquisa pelo essencial., pelo depurado, que encontramos na escultura pública de traço quase minimalista, também se evidencia nalgumas medalhas, a maioria obras de encomenda.
Na escultura realçando a economia das formas, a síntese volumétrica e rigor construtivo das obras intituladas Femina, Sob Suposta Influência da Lua uma de 2007 e outras duas Sob Suposta Influência de Camilo!? de 2008, em articulação com a gravura, e nas medalhas que exploram caminhos expressivos diferentes, a Medalha Comemorativa do 30º Aniversário 25 de Abril em 2004 e ainda a Medalha Comemorativa dos 100 Anos da Primeira Linha Telefónica Lisboa - Porto do mesmo ano, e ambas cunhadas/construídas e onde a funcionalidade e a concreção formal são de realçar.
Do mesmo modo nas fotografias de 1991, é notório o sentido do ritmo aliado ao da essencialidade da imagem. Nestas fotografias agora expostas pela primeira vez, deparamos com enquadramentos em que se procura a definição das formas, a estrutura e o ritmo das mesmas, captadas pelo olhar imediato e quotidiano do fotógrafo que se deixa prender pelo real, e depois o persegue incessantemente, para tornar o acaso em algo diverso, ou para aprofundar a representação do mesmo.
Estes foram alguns dos aspectos que sugerimos como aproximação à obra de António Canau, que para todos os efeitos não esgotam a amplitude do seu trabalho, mas que salientam a caracterização de um percurso singular no panorama actual, e que nos surpreende pelo rigor de percurso e fidelidade a uma iconografia pessoal.

 

CRISTINA AZEVEDO TAVARES
HISTORIADORA E CRÍTICA DE ARTE

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